segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O Cumulo da Covardia

"Não faça da lógica uma religião, pois com a passagem do tempo a razão pode lhe falhar; e quando isso ocorrer você poderá se descobrir procurando refúgio na loucura."
Anne Rice

Desta vez, eu vou introduzir o assunto falando um pouco dos bastidores. Quem sabe ser, se não espontâneo, menos... Previsível? Há um tempo atrás eu escrevi o texto Teste de Visão do Pica-Pau. Um leitor (talvez não seja mais um leitor desde aquele texto) respondeu ao assunto. Eu sei quem é a pessoa, mas não a conheço. Fato é que, de alguma forma, a resposta chegou até mim e dizia que acreditar em Deus é como acreditar em conto de fadas. Também recebi essa reportagem com o astrofísico Neil Degrasse Tyson. Então, os meus dois textos subsequentes foram Diga-me o Que Ouves e Te Direi Quem Tu És e Sobre Ateus, Crentes e Preguiças. Eu também já tinha escrito Deuses Tomam Sopa no Topo do Monte Olimpo, mas é provável que não fora lido.  Para quem gosta deste tipo de discussão, Deus versus Ciência, esse outro link é uma boa pedida (uma moeda só é uma moeda, porque ela tem dois lados).

Essa questão voltou a minha mente, mas não preocupado com o vão embate entre Deus e Ciência e sim curioso em saber por que alguém se sentiria confrontado com um texto meu, a ponto de querer responder nos moldes que o fez. Nunca direcionei meus textos a ninguém, apesar de as vezes imaginar escrever para algumas pessoas (escrever para o computador é muito impessoal). Só consegui chegar a uma conclusão: a lógica. Também costumamos ficar arredios quando reconhecemos o que realmente somos, mas vamos ficar com a lógica por hoje.

Cada um de nós deve ter uma lógica na mente, uma estrutura onde tudo se encaixa muito bem e que fundamenta todas as nossas decisões, escolhas e o que dizemos acreditar. Uma observação pertinente é que, apesar de ser exatamente sobre Deus a sugestão do texto do "Pica-Pau", em nenhum momento eu citei isso. A sugestão foi bem sucedida apenas porque Ele está na mente de quem leu. Se o conceito de Deus não existisse, a interpretação do texto talvez fosse outra. Ou se estivéssemos interessados em olhar para dentro e não para fora, perceberíamos que aquele texto está tentando falar sobre nós. Já falei aqui sobre a capacidade limitada de reconhecermos um universo puro justamente porque nosso cérebro é o produto deste universo que queremos explicar.

É bem provável que o caro leitor, o que se sentiu confrontado, tenha vislumbrado alguma lógica em meu texto e por isso se sentiu impelido a responder. Afinal, como algo que não se encaixa na minha lógica pode parecer tão lógico? O primeiro ponto é que não há lógica no que eu escrevo, no máximo as coisas se encaixam. O segundo ponto já citei outras vezes, a questão não é a lógica, mas sim a escolha. Se a verdade fosse a lógica, ela teria um dono e o resto seria apenas sofisma. E sabemos que não existem "donos da verdade", ou será que existe? Enfim, o que mais existe por aí são lacunas, por isso a importância da escolha.

"(...)
Neo: Só há duas explicações possíveis, ou ninguém me disse, ou ninguém sabe.
(...)
Neo: Escolha. O problema é a escolha."
Matrix Reloaded (2013)

Desviando: Vamos falar um pouco de lógica então. Meu irmão compartilhou uma história que ele ouviu, ou leu em algum lugar. Imagine que você precisa de uma camiseta. Então, você vai a uma loja e encontra uma por 40 reais. No momento de pagar, o atendente muito gentil te avisa, sutilmente, que uma loja cinco quadras adiante vende a mesma camiseta por 20 reais. A maioria das pessoas, assim como eu, provavelmente andaria mais cinco quadras para pagar menos. No dia seguinte, você, que juntou dinheiro durante anos, finalmente vai comprar seu carro. Você chega na concessionária e o carro que você escolheu custa 30.000 reais. Na hora de pagar, o atendente muito gentil te avisa, sutilmente, que uma concessionária cinco quadras adiante vende o mesmo carro por 29.980 reais. E agora? Você anda mais cinco quadras? A minha resposta é não, só não sei ainda porquê.

OK, você pode tentar explicar a questão falando de proporção. 20 em 40 representa metade, enquanto 20 em 30.000 representa apenas 0,07%. Mas você pode não ter levado em consideração que, os 20 reais economizados com o carro poderiam ter feito toda a diferença se fossemos comprar a camiseta após a compra do carro e não antes. Você também pode não ter ouvido ainda o presidente do Uruguai, José Mujica, no documentário Human Vol. 1. Ele diz que quando compramos algo, não compramos com dinheiro, mas compramos com tempo de vida. Ou você acha que conseguimos dinheiro de alguma outra forma? Esse negócio de dinheiro é uma cortina de fumaça. No âmago da coisa, nós estamos falando de horas de vida. Por isso, continuo não sabendo porque 20 reais do meu tempo é mais valioso na primeira ocasião e menos valioso na segunda.

Voltando: É possível que minha crença não passe mesmo de conto de fadas (há muitas lacunas no Universo, lembra?), mas entre o seis e a meia-dúzia, eu escolhi acreditar que a realidade que vemos diante de nossos olhos é pura ilusão, infelizmente construída por nós mesmos para não precisarmos olhar para o que estamos nos tornando.

Eu perdi a esperança em nós. Há quantos milênios a humanidade está tentando evoluir e se tornar algo melhor? Os dias de hoje são menos bárbaros do que séculos atrás? Nós precisamos de campanhas para convencer as pessoas a ajudar outras pessoas. Nós ainda estamos discutindo sobre pena de morte e maioridade penal sem dar estudo aos envolvidos para que possam argumentar também. Nós ainda invejamos, mentimos, matamos, estupramos, decapitamos, roubamos, corrompemos, persuadimos, oprimimos, substituímos pessoas, servimos instituições como se fossem mais importantes que nós. Nós varremos o lixo para debaixo do tapete, nos orgulhamos por fazer isso melhor do que nossos antepassados e a isso damos o nome de evolução. Como se não bastasse, no último século, passamos a destruir nossa casa. E lá do alto, bem lá do alto, olhamos para baixo e nos perguntamos, como Deus pode existir sem fazer nada. Pois é, como podemos não fazer nada?

Desviando: O mundo que construímos está nos consumindo. Ou somos workaholic, ou somos hippies. Uma pessoa sem ambição não tem lugar no nosso mundo. Tente dizer em uma entrevista de emprego, ou para o seu chefe, que você não almeja nada além do cargo que está tentando conquistar, ou que já alcançou. Se você não quer mais, ou você é acomodado, ou você é derrotado. Pense em um empacotador que gosta do que faz. É difícil, segundo a lógica atual, achar que ele goste do que faz. Até podemos concordar que ele seja uma pessoa feliz, mas precisamos de muito esforço mental para acreditar que ele teve sucesso na vida. No mesmo trecho do documentário que já citei, José Mujica também diz que criamos uma sociedade consumista, que inventamos uma série de motivos supérfluos para acreditarmos que a economia tem que girar, caso contrário seria um tragédia.

Voltando: Eu gostaria de, tantas vezes quanto me desse vontade, mergulhar em um lago de águas geladas ao pé de uma cascata e me esquentar ao sol deitado sobre uma pedra. Eu gostaria de me levantar de manhã sem me preocupar em qual dia da semana estamos. Eu gostaria de parar tudo o que eu estivesse fazendo para poder ajudar alguém a carregar seu peso, sem ter quem me cobrasse resultados. Eu gostaria que todos tivessem as mesmas oportunidades de vida. Eu gostaria mesmo é de ter uma bagagem bem pequena para poder aproveitar a viagem, pois não vai dar para repetir o passeio. Mas infelizmente, ou o mundo que criamos não permite espaço para quem acredita em conto de fadas, ou eu não acredito tanto assim no que eu digo que acredito. É Deus quem não existe, ou sou eu quem não existe?

É hipocrisia de nossa parte insistir em falar que nossas crenças e escolhas tenham alguma coisa a ver com lógica. Ela só serve para nos iludir, para nos convencer de que não somos os responsáveis. Ou nós temos alguma alternativa frente ao que é lógico? Lavo minhas mãos.

Mas se ainda assim existisse alguma lógica, eu diria com o pesar da insignificância que seria aceitar que não se pode vencer.

"Às vezes, quando já não nos vemos como o herói do nosso próprio drama...
Sabe, esperando vitória atrás de vitória.
E percebemos profundamente que isto não é o paraíso.
De alguma forma somos especialmente privilegiados.
De certa forma abraçamos a noção de que este vale de lágrimas pode ser perfeito.
Descobri que as coisas se tornavam bastante mais fáceis quando...
Quando eu já não esperava vencer."
Leonard Cohen – I’m Your Man (2005)

Sabe qual é o cumulo da covardia? O medo de um dia ter coragem de seguir com nossas escolhas até as últimas consequências.


Agradecimentos: Ao meu irmão MAS pela história da compra da camiseta e ao meu amigo PER que compartilhou seu questionamento sobre o que é ter sucesso.

6 comentários:

  1. Obrigado mais uma vez pelo texto, Sandrini. Sobre a frase de Rice, gosto de pensar que um louco não é aquele que perdeu a razão, mas aquele que já perdeu tudo exceto a razão. ABS, Roger

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    1. Obrigado pela força, Rogério. Saudades dos almoços com a galera. Grande abraço.

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  2. "O louco é o homem que perdeu tudo exceto a razão". Chesterton.

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    1. Muito boa frase. Poxa vida, se eu a tivesse conhecido antes, teria colocado como citação inicial deste texto. Ficou bem melhor que a minha. Abraço

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  3. Sandrini! Tem um filme que fala sobre o tempo que é bem legal. Se chama "O Preço do Amanhã". Esse é o link do trailer: https://www.youtube.com/watch?v=XUSt9oZUTrs. Eu lembrei dele quando vc mencionou o presidente do Uruguai... Eu acho q ele viu esse filme... Um abraço!!!

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